Esta é a semana das pessoas com deficiências ou necessidades especiais. É pena ser só por uma semana que só é lembrada no primeiro dia.... É pena que ainda seja um tabu social da qual a maioria se envergonha. É pena....
Aquela palavra que mais se ouve quando se fala de deficiência...
Vá-se lá saber porquê a pena dos outros quando nós, deficientes, não temos pena....
Somos assim e pronto.
Falo na primeira pessoa como se tivesse algum tipo de deficiência...
Se calhar até tenho! Aquela deficiência generalizada de não tentar mudar nada porque dá muito trabalho, porque dá!, porque não é o "meu" problema todos os dias...
Vivo com um deficiente motor, que me mostrou ao longo da minha existência que a minha genética pode comportar um gene de coragem, determinação, rectidão, valores... Mas é a minha vivência que vai definir quem eu sou.
Cresci a ver no meu pai um forte, uma muralha...
Quando, aos 4 anos, ele apanha poliomilite, ou paralisia infantil, nada haveria a fazer. A vacina ainda não tinha sido descoberta e pouca informação havia. Mesmo assim, a minha avó não desistiu e correu todos os hospitais do país com ele há procura de uma solução. Houve alguma melhoria, mas nada comparado com o que ele queria... Apesar de não haver amputação, apenas uma das pernas do meu pai se desenvolveu, a outra apenas tem circulação sanguinea.
Ele nunca a perdoou... Ele nunca se perdoou.... Ele nunca O perdoou.
Cresceu vendo a pena à sua volta, revoltou-se quando toda a gente tentava ajudar, atrapalhando mais do que ajudando... Jurou que nunca iria precisar de ninguém para o que quer que seja.. tornou-se num cubo de gelo.
Estudou e pagou o seu curso... Tornou-se numa pessoa respeitável na sociedade alcobacense... Mas o raio da pena continuava na sua sombra.
Conheceu a minha mãe. Namoraram, casaram, tiveram 3 filhos...
O que falta aqui?? Não é a pena, não. Uma mulher apaixonada não sente pena do seu amor, não vê no seu amado a deficência, mas sim o Homem.
O que falta aqui, é o cubo de gelo.
Na tentativa de se proteger, fechou-se em si mesmo, acreditando que não seria possível ninguém gostar dele, pelo que era, mas sim pelo seu dinheiro.
Erro fatal. O amor aguenta tudo, menos a rejeição da parte amada. Se pensarmos nele como um castelo de areia, ele aguentará cm o vento, com a imaginação dos seus construtores, mas nunca quando um constrói e o outro destrói....
Nunca ouvi dele, um obrigado, filha, muito bem, parabens....
o cubo tornou-se num iceberg e já nem ele sabia como partir.
Quase tudo se tornou numa escadaria...
A meio da sua vida, já tinha criado inimigos e amigos de cortesia... amigos não.
Tudo na sua cabeça era uma guerra sem descanso, porque foi assim criado, sempre na luta de algo, sempre a combater o preconceito, a pena, a ignorância.
Dar-lhe um pouco de paz, era a mesma coisa que dar um chocolate a um indígena perdido do amazónia...
A exigência desmedida fez com que conquistasse a revolta dos filhos...
Quando chegou a hora do divórcio, apenas a filha renegada, quis ir de livre vontade, para casa do pai, aos fins de semana. Possivelmente por não ter idade para compreender o porquê de tudo, de não perceber bem as consequências, a guerra que se avizinhava, eu e o meu irmão acabámos por passar anos das nossas vidas a fazer malas e desfazer malas, a escolher entre o natal e a passagem de ano... Quando o meu irmão atinge a maioridade, deixou de escolher. Continuei eu. Veio a exigência a 110%. Foi nesta altura, que percebi quase tudo!! Quando começo a ter que ir às compras lá para casa, quando vou ao café, quando vou à praia... A consciência de que tudo tem um ritmo diferente, uma dificuldade diferente. Ninguém imagina o que uma folha de alface no chão faz debaixo de umas muletas... Nem o que o mármore do chão molhado pode fazer ao esqueleto humano. Ninguém consegue imaginar o que é ir à praia e nunca molhar os pés.
Foi vendo a pena nos olhos das pessoas que percebi a dimensão do mundo dele. Foi ao ouvir as crianças a dizer:" oh mãe o que é que aquele Sr tem?" e o constrangimento da mãe, que percebi a falta de informação que existe neste país, foi neste momento que tive a noção do tamanho do monstro. Foi aqui que nasceu a mulher que sou. Iria ser melhor do que ele poderia esperar, iria tratá-lo de igual para igual, fazê-lo orgulhar-se de mim.
A vida correu, e com a velhice tudo complica e simplifica, clarifica também. A pena continua lá, mas a revolta abrandou, a mágoa desapareceu. A consciência de que o nosso mundo se vai reduzir a quatro paredes e uma janela é aterrorizante, mas o conformismo torna-a tolerável. Não foi isto que quis para ele...
A história dele é tão diferente e tão igual a tantas outras... Muda o cenário, os actores, mas o contexto é igual. A maioria dos deficientes não consegue ter uma vida plena porque a pena, a ignorância, a dificuldade, faz com que tudo seja mais dificil. Consigo imaginar a vida onde qualquer pessoa tem o mesmo direito a viver, a sorrir, a rir. E tudo muda, começa a mudar, quando mudamos a nossa maneira de olhar para as coisas, para as pessoas. Deixo de pensar em mim, para pensar em nós, como um todo. Numa porta grande passa o deficiente e o não deficiente, numa estreita, o deficiente fica à porta.